quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Simphrônio vai ao inferno

Post originalmente publicado em 2009, o qual
repostamos agora, uma vez que o tema
ainda conserva alguma atualidade.

Simphrônio caminhava tranquilamente pelo viaduto do Chá no seu horário de almoço. Absorto em sua faina diária, o contabilista usava um terno alinhado, a sua indefectível gravata e o chapéu branco tipo palheta. Bigodinho negro e muito fino, como convinha a um cavalheiro. Naquele ano de 1929, os maiores ruídos que haviam por ali eram os dos bondes e os dos passos de alguns transeuntes apressados. Também ele tinha alguma pressa, pois já eram 12h50 em seu relógio de bolso. Precisava estar no escritório, na Praça do Patriarca, exatamente às 13h00, quando iniciaria o segundo turno de trabalho, mas ainda tinha que passar na pharmacia.
Foi então que, num átimo, ao passar por baixo de uma escada em meio ao viaduto, utilizada pelos funcionários da Companhia de eletricidade, Simphrônio viu-se imediatamente em outra dimensão. O ar mudou, tornou-se espesso, o barulho era ensurdecedor. Buzinas, gritos, muita gente apressada, vendedores ambulantes aos montes.
Perplexo e paralisado, nosso herói viu o seu relógio e a sua carteira serem roubados por punguistas, menos de dois minutos depois da sua "chegada" ao local. Não sabia se estava em outro país ou em outro planeta, apesar do lugar ainda conservar alguma familiaridade para ele.
Simphrônio estava atônito. As pessoas pareciam malucas. Muitas delas falavam e gesticulavam sozinhas, com uma caixinha nas mãos. Parecia que chegara a um mundo de lunáticos. As mulheres usavam roupas leves e algumas estavam seminuas, pernas à mostra, barrigas à mostra. Ele não estava entendendo nada. Aos poucos, conseguia distinguir alguns prédios que ainda mantinham as mesmas características de alguns minutos atrás, quando tudo era normal em sua pacata vida de trabalhador e homem de família.
Arguto que era, Simphrônio percebera que estava em São Paulo, só não conseguia discernir se estava acordado ou sonhando, ou melhor, tendo um pesadelo.
Continuava se espantando com os tipos que via à sua frente. Muitos tinham os braços, pernas e pescoços desenhados, além de apresentarem pedacinhos de metal pelas orelhas, narizes e bocas. Os cabelos eram de cores variadas e cortes inimagináveis no seu tempo. Em muitos casos não diferenciava homens de mulheres e vice-versa. Teria sido São Paulo invadida por uma tribo de selvagens?
Ele, por sua vez, por estar no Viaduto do Chá, talvez estivesse sendo confundido com os muitos artistas de rua que passam os dias ali, vestidos com roupas de época, trabalhando como estátuas vivas. Por isso, e também devido à correria desenfreada e à indiferença generalizada dos cidadãos paulistanos modernos, ninguém notava a sua curiosa presença.
Esperto, Simphrônio aproximou-se de uma banca de jornais e, depois de quase cair de costas com o número de mulheres nuas em diversas revistas, conseguiu achar um jornal. Avidamente, verificou a data em que estavam. Oito de julho de 2009. Estupefato, concluiu que viajara no tempo exatamente 80 anos!
Logo em seguida, algumas moças bonitas o pegaram pelo braço e o convidaram para momentos de prazer. Cavalheiro que era, agradeceu a boa vontade delas e deixou para outra oportunidade. Eram 13h30. Seu Astolfo, o rígido patrão, não iria perdoar aquele atraso inimaginável para os padrões do escritório em que trabalhava.
Ao tentar atravessar o viaduto, quase morreu atropelado por carros, motos e ônibus. Eram tantos veículos, tanta fumaça, que não conseguia entender como era possível a convivência de seres humanos (Se é que ainda eram humanos) em meio a todo aquele caos.
Observador, notou que as pessoas falavam muito mais sozinhas, nas caixinhas, do que entre si. Outras levavam umas coisinhas nos ouvidos, que ele não conseguia entender para que serviam. Muitas outras paravam diante de coisas ou pessoas e ficavam apontando as mesmas caixinhas em suas direções. Seriam aquelas caixinhas algum tipo de arma ? Ele se perguntava. Aliás, perguntas sem respostas era tudo o que havia em sua cabeça.
Inteligente, pensou consigo mesmo: Vou tentar chegar ao escritório. Seu Astolfo deve estar espumando de raiva. Caminhou alguns metros. Viu um estabelecimento que, apesar das diferenças, se assemelhava com a pharmacia. Mas deixou para outro dia, se houvesse outro dia para ele. Ao entrar no velho edifício em que trabalhava, repentinamente sentiu a atmosfera mudar ao seu redor. Que alívio, voltara a sua doce São Paulo. Deixara para trás aquele inferno de Dante. Estava tão feliz, que seria capaz de beijar a careca de Seu Astolfo. Ele que descontasse as horas que achasse que devia. Estava em casa de novo, e imensamente feliz.

3 comentários:

Anônimo disse...

Gostei do texto! Curiosamente, já escrevi um conto com esses mesmo, digamos, "mote": o homem/cidadão comum aferrado às suas obrigações diárias é tragado por um turbilhão de acontecimentos ou por uma viagem no túnel do tempo = choque de costumes causando estranhamento e perplexidade. "Recursos estilísticos" muito bem exercitados e realizados, prezado blogueiro.


Lula Miranda

Altavolt disse...

Grande Lula! Com certeza a sua crônica (todas elas, aliás) ficou pairando em minha mente, e contribuiu muito para que eu escrevesse este e todos os outros posts. Boas influências jamais são esquecidas. Grande abraço!

Eraldo Paulino disse...

Me lembrou da música "pequeno perfil de um cidadão comum" de Toquinho e Belchior.

Grande texto, Alta!

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