sábado, 5 de março de 2011

Homem-Sapato

Inspirado no conto "homemcarro",
de Ademir Assunção,
no livro "A Máquina Peluda".
O Homem-Sapato já conta com milhares de quilômetros rodados. Já fez várias revisões e ainda continua apresentando bom desempenho. Os triglicerídeos encontram-se em níveis desejáveis, assim como o colesterol e a glicemia. Poderia se dizer que ele está bem lubrificado. Também, pudera, vive rodando, ou melhor, circulando pelas ruas da cidade, faça chuva ou faça sol. Enfrenta as escadas e rampas sem medo de ser feliz. Já não se preocupa se a distância que irá percorrer seja medida em quilômetros, pois sabe que, na maioria das vezes, seu desempenho será melhor do que os veículos motorizados. Os carros simplesmente não andam mais numa cidade como São Paulo. Enquanto isso, o Homem-Sapato segue lépido e fagueiro pelas calçadas esburacadas e malconservadas. Faz em uma hora e meia o que um motorista faria em duas horas ou talvez mais. E, de quebra, pratica diariamente a sua atividade aeróbica. Une o útil ao agradável em sua rotina de deslocamentos. Evita os riscos vividos constantemente pelas motos e bicicletas, e o stress imenso causado pelo anda e para dos veículos convencionais. Também não precisa sofrer as agruras e as incivilidades dos ônibus e metrôs caros e abarrotados. Ao chegar em casa, o Homem-Sapato é diariamente bombardeado pelas dezenas de elegantes propagandas de veículos. Não consegue entender como podem vender tantos carros em uma cidade que praticamente já não anda e respira apenas monóxido de carbono. Tranquilo, sabe que já licenciou e pagou o IPVA do seu Vulcabrás. Na semana passada, levou-o para a inspeção veicular e foi aprovado com louvor. O técnico da Controlar ficou impressionado com as baixíssimas emissões de poluentes do Homem-Sapato. Chegou a afirmar que nunca havia presenciado um catalisador tão eficiente. O máximo que pôde detectar foi algum chulézinho básico e eventualmente alguma flatulência, visto que ninguém é de ferro, e o sistema de escapamento tem que funcionar perfeitamente. Além de todas essas vantagens, um veículo ultra compacto como o Homem-Sapato raramente precisa se preocupar com os problemas de estacionamento. Não é incomodado pelos famigerados flanelinhas, nem tampouco precisa ficar preenchendo cartões de zona azul. Nesse quesito, as únicas dificuldades que enfrenta acontecem nas raras vezes que se aventura a trafegar nos transportes coletivos. Aí, invariavelmente, falta espaço para uma perfeita baliza no chão dos veículos e o Homem-Sapato chegar a ficar por cima ou por baixo de outros pisantes similares a ele. Fora isso, anda livre. Mesmo nas enchentes que assolam Sampa, o desempenho do Homem-Sapato é considerado bastante razoável. Quando necessário, sobe nas partes mais altas e se protege. Quando não, segue andando pelas próprias ruas alagadas, tomando alguns cuidados básicos. Quase nada barra a autonomia de deslocamento do Homem-Sapato, salvo condições climáticas muito severas, que não acontecem com muita frequência. Até os amigos do alheio pensam bem antes de abordar o Homem-Sapato, tendo em vista suporem que ali não vão encontrar nada de que possam se apoderar, a não ser um par roto e desgastado de sapatos. Ou seja, o Homem-Sapato trafega pela cidade quase invisível, poucos o notam, visto estarem atentos aos volantes e aos semáforos. Por isso, o Homem-Sapato pratica a caminhada defensiva, ou seja, está sempre atento aos movimentos dos outros veículos, com o objetivo de evitar acidentes e traumas. É claro que o Homem-Sapato, como cidadão, tem suas reivindicações aos governantes e elas não poderiam deixar de ser relativas à melhoria das condições de pavimentação, sinalização e iluminação das calçadas e passeios públicos, tendo em vista o pouco caso e a desatenção com que são tratados os caminhos para pedestres nesta cidade. Mas, apesar dos pesares, o Homem-Sapato continua literalmente sua caminhada feliz da vida, chegando em casa cansado, mas tranquilo. Então, basta uma bela ducha, uma troca de óleo e um reabastecimento rápidos, uma noite de descanso, para, no outro dia, começar tudo de novo.

2 comentários:

Eraldo Paulino disse...

Se teu post fosse sobre homens-cegos, TALVEZ houvesse mais amostras por aí, e mais engarrafamento também.

Abraços!

Ademir disse...

Tenho visto homens e mulheres-sapatos em passeios clandestinos pela cidade. Um abraço

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