Apesar da habitual lotação do 702-U, e de estar em pé, nesta manhã consegui um lugarzinho um pouco mais confortável, uma vez que me encaixei numa pequena área envidraçada, próxima à catraca. Pelos menos não tomaria tantos pisões, empurrões e encoxadas, e ficaria mais protegido de eventuais gatunos e mãos-leves, presenças freqüentes nesse horário.
Nessa privilegiada posição, podia ir contemplando a paisagem da Av. Rebouças, os pontos de ônibus lotados, as pessoas se engalfinhando na porta de entrada para tentar um lugarzinho no busão em que eu me encontrava, além do trânsito caótico de veículos, que trafegam fora do corredor exclusivo de ônibus.
Em alguns muros da avenida, podia ler pichações contrárias ao sistema eleitoral brasileiro e ao resultado parcial das eleições paulistanas.
A frase que mais me chamou atenção foi: “Quem tem fome não consegue votar direito!” ou algo equivalente. Foi aí que fiquei pensando em como seria melhor se o voto fosse facultativo, quando, em tese, só votariam as pessoas realmente preocupadas com a política nacional. Donde se conclui que as escolhas seriam mais sensatas e os eleitos não seriam tão sofríveis quanto os últimos resultados apontaram, principalmente os vereadores.
Por dedução, com eleitos mais decentes, teríamos mais chances de minimizar as agruras da enorme parcela do povo brasileiro que não come direito e não tem acesso à educação. Quem sabe aí conseguiríamos, nas eleições futuras, ter um quorum espontâneo de eleitores muito maior e mais qualificado. Quem sabe? Apenas elucubrações mentais matinais, a bordo do sofrível 702-U, que é - entra prefeito e sai prefeito - apenas mais uma linha de ônibus esquecida de Sampa, que, como tantas outras, transporta apenas trabalhadores e estudantes, além de muitos idosos e crianças, que, faça frio ou faça chuva, logo cedo precisam se dirigir aos hospitais públicos do SUS, para as consultas e exames agendados há meses.
Essa linha, como quase todas as outras, não transporta parentes de políticos, muito menos pessoas das classes A e B.Então, melhorar pra quê?
Mas o meu trajeto ainda estava pela metade, quando me deparei com outra cena marcante: No ponto de ônibus da Faria Lima, em meio à multidão de passageiros, notei um jovem gordo e forte, moletom e camiseta imundos e rasgados, pés descalços, cabelos emplastados de sujeira, com um enorme chico-doce nas mãos. Além dessa triste situação, o que mais me chamou a atenção, é que o rapaz vasculhava as lixeiras e andava soberano por entre todas as pessoas do ponto, que lhe abriam passagem incontinenti, a maioria por receio talvez. Apesar de seu triste estado de abandono e exclusão, o jovem mantinha um ar digno, possivelmente respaldado pelo enorme cacete de madeira que levava consigo. Ele havia descido tanto, que de alguma maneira se encontrava acima das pessoas comuns. Como tudo de pior já lhe acontecera, agora nada mais importava, estava imunizado contra desgraças. Os outros que o temessem e o respeitassem, pois ele já não tinha mais nada a perder, nem podia descer mais baixo. Nossa sociedade que o engolisse, já que o criara apenas com descaso, abandono e sofrimento.
3 comentários:
Sei bem como é isso, pois andei muito de busão aí em SP e concordo com o voto não obrigatório, tanto que faz quase 10 anos que não voto.
Abraço!
Caraca, meu velho... esse seu texto tinha que ir pra minha mostra "Coletivo: Kaos"... e olha que o 847P que eu pego, não fica muito atrás do seu 702u, no que se refere ao "calor humano" da lotação em seu interior...rs e quanto ao cidadão em questão, acho que até sei quem é, já o havia percebido na Faria Lima, acredito que ele fique sempre por alí, na altura da Panificadora Tupinambá, quase esquina da Faria Lima x Rebouças... O bacana é que todos vêem e poucos se apercebem. Você é uma das boas exceções, mon ami!
Abração
(em segunda edição, pois na primeira esquecemos de colocar as letrinhas de confirmação)
Alta:
Só pra esclarecer, mesmo porque tá meio que esclarecido na continuidade do texto, "chico-doce" é um porrete? Gíria nova pra gente
Então, você é um dos heróis que, dentro do que preconiza o bom senso sustentável, resiste em usar o transporte coletivo... Nossos leais cumprimentos
(se bem que em sampa acaba sendo até mais ágil, certo?)
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