Caríssimos, logo em seguida ao dia mundial sem carro, queria lançar aqui mais uma campanha de conscientização, que também, tal qual aquela, já está fadada ao insucesso, visto tratar-se de tema espinhoso, de baixíssima receptividade por parte das pessoas em geral. Seria o dia mundial sem hipocrisia.
A ideia consiste, similarmente ao caso do automóvel, em que, pelo menos nessa data, as pessoas saíssem de casa desarmadas da hipocrisia. Deixariam a hipocrisia dormindo a
té mais tarde, brincando com com os bichinhos de estimação e regando as plantas. E olha que não faltariam tarefas para a Sra. Hipocrisia, e todas elas muito mais úteis do que ficar por aí bajulando algumas pessoas, enrolando outras, distorcendo assuntos, tapando o sol com a peneira, fingindo não ver o que se passa de errado e desagradável no seu entorno, entre tantas outras tarefas ingratas desempenhadas com maestria por essa dama sem vergonha e sem caráter.

No dia mundial sem hipocrisia, as pessoas estariam livres para falar o que realmente pensam, para admirar quem realmente admiram e para ignorar todos aqueles dos quais se aproximam apenas por interesses profissionais, pessoais ou econômicos. Seria também interessante encontrar uma fórmula química que possibilitasse a todos a amnésia total dos fatos no dia seguinte, para que não houvesse retaliações, muxoxos e reclamações pelos atos praticados no dia da verdade e da sinceridade absolutas. Nesse dia, haveria uma trégua ampla total e irrestrita em relação à falsidade, à enganação e à mentira. Todos finalmente estariam livres para dizer a completa verdade e tomar as atitudes justas e necessárias nas suas respectivas áreas de atuação.
Alguns talvez sucumbissem nessa data, uma vez que não receberiam rapapés, nem seriam tratados com os salamaleques habituais por parte dos seus séquitos de empregados, subordinados e agregados. Talvez a verdade, mesmo que num único dia, fosse uma dose elevadamente cavalar para pessoas acostumadas à contínua e ininterrupta puxação de saco.
Os bajuladores, esses teriam um dia de folga do seu pesado fardo de passar os anos vivendo apenas e tão somente para o atendimento de necessidades e vontades alheias e distantes das suas. Talvez vivessem um pouquinho das suas próprias vidas nesse dia.
Quanto à maioria dos políticos, para estes talvez fosse melhor nem sair de casa nessa data especial, uma vez que quase se metamorfoseiam na própria hipocrisia, chegando, em alguns momentos, a serem o retrato mais fiel e acabado dela.
Seria um dia de liberdade, no qual não precisaríamos gastar nosso estoque de risos forçados e falsas expressões de amabilidade, mas em que, por outro lado, estariam totalmente liberados os sorrisos espontâneos e gratuitos e as conversas francas e desarmadas, que nada esperam em troca a não ser a amizade e a compreensão do interlocutor.
Sei, como já afirmei, que esta iniciativa não logrará êxito, pois, como no dia mundial sem carro, em que pouquíssimos deixam os véiculos em casa, a esmagadora maioria das pessoas jamais iria sair para a rua desprovida de seus cartuchos de hipocrisia, que passaram a ser tão indispensáveis na torta forma de convivência largamente adotada nessa estranha sociedade moderna em que vivemos.
Assim como o CO2 liberado pelos automóveis aumenta o buraco na camada de ozônio, as altas doses de hipocrisia liberadas nas relações humanas diárias contribuem fortemente para o vertiginoso aumento dos vazios existenciais em nossas almas. Veneno puro.